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QUALIDADES DO CONTADOR DE ESTÓRIAS

O mestre Malba Tahan, no Capítulo III de "A arte de ler e contar histórias", enumera as qualidades que um contador de histórias deve ter:
1º) Sentir, ou melhor, viver a história; ter a expressão viva, ardente, sugestiva
2º) Narrar com naturalidade, sem afetação
3º) Conhecer, com absoluta segurança, o enredo
4º) Dominar o auditório
5º) Contar dramaticamente (sem caráter teatral exagerado)
6º) Falar com voz adequada, clara e agradável
7º) Evitar ou corrigir defeitos da dicção
8º) Ser comedido nos gestos
9º) Emocionar-se com a própria narrativa
Vamos olhar essas características, uma a uma:
1) Sentir a história
Como se dá isso? Quando você lê uma estória, você se permite viajar nas palavras, imaginar as cenas, consegue sentir os aromas, o calor do sol, a brisa? Se consegue, viva! Já é um passo adiante. Mas se tem dificuldade nesse particular, terá que aprender uma técnica chamada "visualização". É muito usada em meditação e nos ajuda a sair da realidade, soltar o espírito, entrar em contato com o nosso íntimo. Faça um pequeno exercício de imaginação. Pegue uma imagem de uma fruta, por exemplo. Examine-a bem, veja a beleza e a vivacidade de suas cores. Imagine a sensação dela em sua mão. Permita-se aspirar seu delicado aroma. Imagine-se dando-lhe uma dentada, sentindo seu suco doce em sua boca. Faça esse exercício tantas vezes quantas forem necessárias para tornar a imagem o mais vívida possível. Mude de imagem. Pegue uma cena, um quadro. Observe os elementos, veja as pessoas pintadas nele. O que será que estão pensando, conversando? Quem são? Como é a vida delas? Viaje no que vê. Esses exercícios são ótimos para aprendermos a soltar as amarras do concreto, do cotidiano, e embarcar no abstrato. O contador de estórias precisa "ver" a cena que está narrando, senão como vai conseguir passá-la com a emoção certa para seu público?
2) Narrar com naturalidade
Menos é mais, já se disse muito isso. O exagero nunca é bom. Como você já deve ter desenvolvido a habilidade de "ver" e "sentir" sua estória, já consegue saber que sentimentos permeiam cada cena. Sinta o que está acontecendo, passe para sua audiência, mas sem afetação, sem teatralidade em demasia para não soar canastrice, caricato. Outra, traga a estória para a linguagem do seu ouvinte. Nada de estilo rebuscado, discursos empolados, retórica, etc etc. Só vai ficar chato e você vai soar esnobe, metido, enjoado. Lembre-se: para contar bem uma estória, deve ser estabelecida uma boa conexão com o seu ouvinte. Palavras difíceis, floreios e latim são ótimos para aborrecidos compêndios científicos e para entediar plateias. Discurso simples, narrativa clara, em linguagem correta, sem rebuscados, nem palavras de baixo calão ou gírias vulgares. Contar estórias também é educar.
3) Conhecer o enredo
Básico. Antes de contar sua estória, você tem que conhecê-la muito bem. Claro, não precisa decorar, tem que aprender. Ver as linhas principais do enredo, o que chamamos de "esqueleto". É interessante, no entanto, decorar falas bem estruturadas, espirituosas, que dão o charme à estória. Como essa oração que um pescador fazia, no conto "Viva Deus e ninguém mais", recolhido por Câmara Cascudo (que vou colocar em outra postagem):Viva Deus e ninguém mais!Quando Deus não quer,No mundo nada se faz!
De resto, aprenda bem sua estória. Ensaie em frente ao espelho, grave num gravador. Conte para si mesmo, depois para um amigo. Nada mais embaraçoso do que se deparar com aquele terrível "branco" bem na frente de uma enorme plateia... A estória tem que fluir. Hesitou, dançou. Por isso, não recomendo decorar a estória, mas aprendê-la. Ademais, quem conhece a estória é você, que a está contando. Se esquecer um detalhezinho, apenas você vai saber. Por isso, nada de pânico se se vir em uma situação dessa. Não pare, continue a contar sua estória. Lembre-se: "o show deve continuar"!
4)Dominar o auditório
Primeiro, verifique o local onde vai se apresentar. Veja se não há elementos que possam distrair sua plateia. Peça, se for o caso, que desliguem os celulares. Assegure-se que nada tirará o foco de sua apresentação, mas prepare-se também para imprevistos, especialmente se o seu público são crianças... Nesse caso, sugiro manter contato visual com as que puder, dirigindo-se a elas, enquanto desenvolve sua narrativa. Envolva-as na sua estória, seduza-as com as suas palavras. Se uma lá no fundo começar a conversar, não pare de contar a estória. Se parar, cortará a magia e sua estória estará estragada. Ignore o tagarela. Se sua estória e o seu desempenho forem bons o bastante, a audiência estará com você.
5) Contar dramaticamente
Uma narrativa linear é maçante, entediante e desinteressante. Conte sua estória com a emoção certa, pinte a cena da forma mais vívida possível para que o seu público viaje com você, entre na estória, prenda a respiração nos momentos de tensão ou suspense. Guie-os nesse passeio. Mas, como disse antes, nada de exageros ou você pode perder sua estória. Observe o trabalho dos bons atores, principalmente os de teatro. Veja como se portam em cena.
6) Falar com voz adequada
Respire, nada de pânico para sua voz não soar gasguita ou estridente, o tempo é todo seu. Conte sua estória sem se apressar, delicie-se em cada passagem. Fale pausadamente, claramente, inspirando e exalando normalmente. O Prof. Silveira Bueno uma vez disse que "Uma fala correta e expressiva é, só por si mesma, agradável, representando, de antemão, dois terços do êxito a alcançar". Faça exercícios vocais, pegue um texto e pronuncie pausadamente cada sílaba, enunciando as vogais e as consoantes bem explicadas. Falar direito é importante para a compreensão da narrativa.
Em relação à altura da voz, é necessário saber o tamanho do local onde irá acontecer sua apresentação, pois é possível que você precise lançar mão de microfone. Prefira os de lapela ou aquele portátil, que se usa tanto em cursinhos. É preciso observar a acústica do lugar pois é um elemento muito importante no sucesso de sua apresentação. Nunca tente competir com os barulhos do lugar, senão você irá prejudicar sua voz, que é seu instrumento precioso de trabalho. Por isso, dê preferência a se apresentar em lugares calmos, longe de balbúrdia, telefones tocando, televisores ligados, etc etc.
7) Evitar ou corrigir defeitos da dicção
Sua voz é seu instrumento, já disse antes. Trate-a com carinho e cuidado. Faça exercícios vocais, aprenda a pronunciar todas as sílabas das palavras, sem "comer" nenhuma vogal ou consoante. Fale "explicadinho". Não engula ou junte palavras: vambora! Como disse antes, o contador de estórias é também um professor. Não ensine errado.
8) Ser comedido nos gestos
O gesto é um recurso dramático. Usado inapropriada ou exageradamente fica caricato, vazio. Uma contação monótona, sem graça, oca, tem um efeito hipnótico sobre a plateia. Logo, o seu ouvinte vai perder o foco, bocejar, olhar o relógio, doido para ir embora. Portanto, saiba manter sua atenção, movimentando-se pelo espaço onde está se apresentando. Preencha o espaço, use seus olhos, seus ombros, seus braços, suas mãos. Nada de enfiá-las no bolso, cruzá-las ou colocá-nas costas. Elas são preciosas auxiliares do seu trabalho. Por outro lado, cuidado com a síndrome da mão nervosa, que passa pelo cabelo, enxuga um suor imaginário, coça uma orelha, etc. Fica muito feio e desvia a atenção. Todos os seus movimentos devem ter um propósito dramático. O exagero leva ao ridículo.
9) Emocionar-se com a própria narrativa
Se você consegue se emocionar, imagina quem lhe escuta? Entre na estória, mergulhe no drama, ria com os personagens, sofra com eles. Enxergue-os como reais, irmãos, primos, tios ou vizinhos seus. Só assim você vai conseguir passar a emoção da sua estória, cativar seus ouvintes, levando-os, junto com você, nessa viagem pela imaginação. Se você mesmo se emociona com sua estória, parabéns! Encontrou o caminho certo. Pronto. Essas são algumas dicas para ajudar no trabalho como contador de estórias. Aos poucos, vou publicando aqui estudos que, tenho certeza, vão ser muito úteis para quem se interessa pelo assunto.
CONTO: "Viva Deus e ninguém mais!"
Era uma vez um casal de velhos muito unidos e religiosos. O velho, que era pescador, só falava dizendo um versinho assim:
Viva Deus e ninguém mais, Quando Deus não quer, No mundo nada se faz!Tanto dizia que acabou chegando aos ouvidos do rei, que era orgulhoso por demais. Aborreceu-se muito e mandou chamar o velho pescador. Este, logo subindo a escadaria, e mesmo na presença dele, foi dizendo o versinho:
Viva Deus e ninguém mais, Quando Deus não quer, No mundo nada se faz! Aí é que o rei ficava furioso com aquele atrevimento. Deu ao pescador um anel muito precioso e disse que voltasse quinze dias depois, trazendo a jóia.
O pescador entregou o anel à mulher, recomendando muito e continuou na sua vida ao mar. O rei mandou um criado de confiança comprar o anel. A velha não queria vender, mas o criado tanto dinheiro ofereceu que a velha ficou tonta e vendeu o anel. O criado entregou o anel ao rei e este, por segurança, atirou-o ao mar.
Quando o velho voltou e achou tanto dinheiro em casa e soube da verdade, botou as mãos na cabeça, vendo que estava morto. Não deixou de ir pescar na madrugada e, logo no primeiro lanço de tarrafa, trouxe um peixe grande e gordo que ele separou para sua ceia. Voltando, vendeu os peixes e mandou preparar o tal peixe.
Assim que a velha abriu a barriga do peixe encontrou o anel. Levou-o ao marido que não tinha deixado de dizer o seu "Viva Deus e ninguém mais..." No dia marcado o pescador subiu as escadas do palácio e quando o rei pediu a jóia, o velho a entregou, limpinha como a tinha recebido. O rei ficou assombrado e disse: - "O senhor tem toda a razão. Viva Deus e ninguém mais, quando Deus não quer, no mundo nada se faz". Deu-lhe muito dinheiro e despediu-o. O velho voltou e morreu com mais de cem anos, sempre cantando o verso:
Viva Deus e ninguém mais, Quando Deus não quer, No mundo nada se faz! (Conto registrado por Luís da Câmara Cascudo, em "Contos tradicionais do Brasil".)
Sugestões de Leitura
ABRAMOVICH, F. 1997 – Litaruta Infantil: Gostosuras e Bobices. SP, Scipione.
BARBOSA, Rogério Andrade. 2001 – “Histórias africanas para contar e recontar”, SP, Ed. Brasil.
BARBOSA, Rogério Andrade. 2002 - “Como as histórias se espalharam pelo mundo”, SP, DCL.
BENJAMIM, Walter, 1995. Rua de Mão Única. Obras recolhidas II, Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária.
BENJAMIM, Walter, 1982. O narrador. Coleção Os Pensadores. Ed. Abril, São Paulo.
CASCUDO, L. da C. 2003 – Contos Tradicionais do Brasil. RJ Ediouro, 20ª ed. Coleção Terra Brasilis.
CHAUÍ, Marilena. 1984 – Repressão Sexual, essa nossa (des)conhecida. São Paulo, Brasileinse.
COELHO, Beth. 1991 – Contar histórias, uma arte sem idade. Rio de Janeiro, Rocco.
COELHO, Nelly Novaes. 1987 - O conto de fadas. São Paulo, Ática.
DARNTON, Robert. 1986 – O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro, Graal.
ESTÉS, Clarissa Pinkola, 1994. Mulheres que correm com os lobos: Mitos e histórias de arqueologia da mulher selvagem. Rio de Janeiro, Rocco.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. 2005 - Contos dos Irmãos Grimm, Rio de Janeiro, Rocco.
FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaina (org), 1998 – Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 2ª edição.
FREIRE, P. 2003 – “A importância do ato de ler”. SP< Ed. Moderna. GREENE, L. & BURKE J. S. 2001 – Uma Viagem Através dos Mitos:O Significado dos Mitos como um Guia para a Vida. RJ. Jorge Zahar Editor. GRIMM, Jacob & GRIMM, Wilhelm. 1986 - Branca de Neve e outros contos de Grimm. Seleção e tradução de Ana Maria Machado. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. KHAWAJAH, Nasr Al-Din, séc 14 – “Histórias de Nasrudin”. RJ, Edições Dervish. LIMA, Francisco de Assis de Souza. 1985 – Conto popular, comunidade e narrativa. Rio de Janeiro, Funarte/INL. MACHADO, A. M. 2003 – “Menina bonita do laço de fita”. SP, Ática. MATOS, G. A. 2005 – “A palavra do contador de histórias”. SP, Martins Fontes. MATOS, G. A. & SORSY, I. 2005 – “O Ofício do Contador de Histórias – Perguntas e Respostas, Exercícios Práticos e um Repertório para Encantar”. SP, Martins Fontes. MARQUES, Gabriel Garcia, 1995 – Como contar um conto. MONTENEGRO, A.T. 1994 – História Oral e Memória: A Cultura Popular Revisitada. SP. 3ª ed: Contexto, Caminhos da História. ORLANDI, E. P. 1988 – Método/História in: Discurso e Leitura. SP Cortez, Coleção Passando à Limpo. PERRAUT, Charles. 1977 – Contos. Lisboa, Estampa. PROPP, Wladimir S. 1984. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro, Martins Fontes. RIBEIRO, J. 2004 - “Ouvidos dourados – a arte de ouvir as histórias... para depois contá-las”. SP, Ed. Ave Maria. ROMERO, Silvio. 1985 – “Folclore Brasileiro: Contos Populares do Brasil”. SP, Ed. Itatiaia Ltda. ROSA, Sonia. 2006 – “O menino Nito”. RJ, Pallas. SANT’ANNA, Afonso Romano de. 1985. Paródia, paráfrase & Cia. São Paulo, Ática. SIMPKINSON, Charles e SIMPKINSON, Anne (orgs). 2005 – Histórias Sagradas. Rio de Janeiro, Rocco. SISTO, Celso, 2005 – Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Série Práticas educativas, Curitiba, Positivo. SOUZA, Ângela Leite de. 1996 – Contos de fada: Grimm e a literatura oral no Brasil. São Paulo Ática. VOGLER, Christofher. 1997. A jornada do escritor: Estruturas místicas para contadores de histórias. Rio de Janeiro, Ampersand Editora. Contadora, Cantante e Arte-Educadora Maria Maranhão Contato

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